Não virei eremita, só fiz uma retirada estratégica

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Não virei eremita, só fiz uma retirada estratégica



Meus últimos momentos dentro do sistema religioso foram marcados por “gotas d’água”. Apesar de não frequentar mais uma igreja, ainda continuei participando de atividades do sistema religioso, não atividades de igreja local, mas as que envolviam várias igrejas e denominações diferentes, como rede apostólica, torre de oração, café da manhã com líderes regionais.

Uma das gotas já comentei aqui, que foi o incidente sobre a alimentação.

Uma outra aconteceu em uma reunião de rede apostólica, com lideranças religiosas de vários bairros do Rio de Janeiro, e o líder principal, em sua fala de boas-vindas, diz a seguinte frase:
__ Temos pessoas aqui de várias denominações e grupos religiosos, temos várias diferenças, mas o que importa é que se você crê na Trindade e crê que Jesus é Deus, então temos a mesma fé e podemos caminhar juntos.

Pensei: complicou, eu não creio mais em Trindade, e a história de Deus encarnado estava sendo investigada... O que estou fazendo aqui?

E a última gota d’água, e a mais terrível de todas, é que fui convidada para participar de um programa de televisão em uma emissora gospel e o assunto era sobre a profissão escritor, e eu iria participar de um bate-papo com outros autores. Durante o programa, que era ao vivo, descobri que um dos autores convidados era um escritor de contos eróticos (é, isso mesmo, você não leu errado, contos e-ró-ti-cos).

Na hora, devido ao nervosismo da situação inusitada – sou mais de bastidores, não gosto da frente das câmeras – achei meio estranho, mas nem poderia falar nada, o programa já estava acontecendo.

Mas na volta para cada, e à noite quando revi o programa na internet, me dei conta do absurdo da situação: uma emissora gospel convida um autor de contos eróticos para uma mesa redonda com outros autores religiosos. Fiquei irada por terem me colocado nessa situação e no dia seguinte enviei um email aos produtores e ao apresentador do programa, falando da minha indignação. E, pasme, a resposta que tive foi um email tremendamente desaforado e arrogante. Nem um mínimo pedido de desculpas.

Nesse momento decidi que estava fora de todo o sistema religioso, e não apenas de uma igreja. Entendi que deveria sair de tudo, tudo mesmo. E assim aconteceu e assim eu fiz.

Ainda fui convidada para fazer palestras em umas duas ou três igrejas, mas no contato telefônico eu já deixava claro que não frequentava uma igreja, e que estava fazendo teshuvah, e indicava meu blog para que soubessem em que eu acreditava, e então, se não houvesse problema, eu iria fazer a palestra com todo prazer. Nem preciso dizer que no dia seguinte me telefonavam de novo pedindo desculpas, mas não seria possível manter o convite (eu já sabia).

E por conta de tudo isso os religiosos costumam nos acusar de ficarmos sozinhos, de ficarmos isolados, de abandonarmos a “comunhão” etc etc. Pensam que viramos eremitas*, o que não é verdade (se bem que de vez em quando dá mesmo vontade de fazer como o profeta Eliseu, e morar em cima de uma montanha, bem longe deste mundo podre e injusto).

Não viramos eremitas, e é uma pena que pensem que nós estamos isolados. Não nos isolamos, apenas nos afastamos daquilo que não faz mais parte de nossas crenças. Não podíamos ser hipócritas e também não podíamos ficar incomodando os que não pensam como nós, pois não há “como caminhar dois juntos se não estiverem de acordo”.

E naturalmente nos aproximamos e atraímos pessoas que acreditam nas mesmas coisas que nós, é o natural da vida. Não estamos isolados, temos amigos reais e virtuais, estamos sempre em contato com muitas pessoas, continuo aconselhando pela internet, pessoas de várias partes do Brasil me procuram, meu primeiro livro continua sendo lido e por causa dele tenho novos amigos de perto e de longe.

Enfim, continuamos na militância, com novas convicções, mas nunca isolados, nem solitários, nem afastados da sociedade em todos os sentidos. Frequentamos shopping, parques públicos, viajamos, saímos com os amigos, visitamos parentes. Continuamos interagindo com as pessoas, face a face ou pela internet. Encontramos os amigos que também fazem teshuvah para compartilhar, trocar experiências, comer juntos – a verdadeira comunhão – a diferença é que preferimos “cultos ao ar livre”, como piqueniques nos parques.

É verdade que frequentar restaurantes e festas se tornou uma coisa complicada, principalmente por causa das nossas restrições alimentares. Só vou a restaurantes quando não há outro jeito, por exemplo, quando estou viajando. E quando há chance, agradeço o convite para festas e recuso educadamente (mas as pessoas não entendem muito bem isso). Casamentos de religiosos é uma tortura para mim. Tem a cerimônia, que não condiz com minhas crenças atuais. Tem a praga de 99% dos vestidos serem indecentes e isso me irrita profundamente (e as piricrentes me chamam de herege, né?). E ainda tem a comida, que impressionantemente é quase toda com camarão e carne de porco (calabresa, presunto). E para completar a tragédia, não bebo refrigerantes também. Enfim, se vai pagar para eu ir em uma festa à toa, é melhor convidar alguém que vai aproveitar melhor. Mas é tão complicado explicar tudo isso e não ser tratada como uma portadora de doença contagiosa ou como uma grande mal-educada e antissocial.

Quando sou convidada para alguma refeição na casa de amigos sempre pergunto se não vou ofender se levar a minha comida – festinha com estilo americano é bem mais fácil administrar – , e assim eu só como e bebo o que eu levo, e a amizade continua. Normalmente os amigos não-religiosos não se importam e nem ficam ofendidos, e ainda gostam muito da comida que levo, rsrs. Mas os religiosos, ah, é cada cara feia para cima de mim. E melhor nem comentar o cardápio de certos almoços nas casas de religiosos, parecem que fazem de propósito, para nos afrontar.

Apenas essas coisas fazem com que realmente não frequentemos festas e algumas reuniões, mas não estamos isolados das pessoas.

E o mais incrível disso tudo é que hoje temos tido mais contato com “ímpios”, que veem em nós algo diferente, e respeitam nossas crenças e até admiram quando falamos que praticamos a alimentação bíblica, por exemplo, e isso tem nos motivado a estar mais perto deles, coisa que antes não acontecia. Alguns nos fazem perguntas sobre a Torah, e isso é uma grande novidade para nós, porque no sistema religioso nossa “missão” sempre foi capacitar os fiéis, mas agora, nessa nova forma de prática da fé, os “ímpios” nos procuram e nos ouvem.

A parte engraçada da história de estar fora do sistema religioso é quando encontramos algum(a) amigo(a) religioso e o diálogo é quase sempre este:
__ Oi, quanto tempo – cumprimentamos.
__ Olá, tudo bem. Em que igreja vocês estão? – eles perguntam.
__ Nenhuma – respondemos.
__ (Cara de espanto) Como?
E nesse exato momento eu começo o meu discurso sobre desconstrução, teshuvah, antes que a pessoa comece a me “evangelizar” e pense que virei uma perdida.
__ Mas e a comunhão? – sempre perguntam.
Eu explico o que é comunhão e pergunto se realmente há comunhão de verdade na religião.
__ E o dízimo? – a pergunta fatal.
Respondo e explico o que entendo como dízimo.
Normalmente as pessoas concordam com tudo que dizemos, mas a maioria diz:
__ Mas na minha igreja não é assim.
Melhor nem comentar o nível de cegueira.
E aí então vem a pergunta final e o corte nada sutil na conversa:
__ Mas vocês continuam firmes com Deus?
__ Mais do que nunca – afirmo.
__ Ah, então, isso é que importa, se vocês estão firmes com Deus, então está tudo bem.
Nem tento explicar que não uso o nome Deus, deixa pra lá.

* Um eremita ou ermitão é um indivíduo que, usualmente por penitência, religiosidade, misantropia ou simples amor à natureza, vive em lugar deserto, isolado. (Wikipedia)