DEMOcracia religiosa

Apêndice

DEMOcracia religiosa



Nasci no início da ditadura, mas cresci em um ambiente democrático, que é o regime do grupo religioso que meus pais seguiam e que eu segui até quase completar 40 anos. Aos oito anos já havia adquirido o direito de votar e ser votada nesse sistema. Aos 14 já liderava reuniões administrativas dos adolescentes, com regras parlamentares, eleições diretas, atas e, lógico, a politicagem dos bastidores que nunca deixei de notar com meus olhos sempre questionadores. E desde os 17 anos, e por muito tempo dentro do sistema religioso, fui secretária de atas em várias instituições, e por causa da função estava presente em todas as reuniões e assembleias administrativas e precisava prestar muita atenção em tudo que se falava, porque não eram gravadas como hoje, contava apenas com minhas anotações que serviam de base para redigir as atas depois.

Aos 18 anos presenciei a queda da ditadura e o retorno da DEMOcracia no Brasil. Uma cena marcante que não sai da minha mente foi a comoção coletiva por causa da morte de Tancredo Neves, as pessoas choravam por terem perdido o grande "salvador da Pátria", e eu ficava olhando aquilo e não entendia porque tanto desespero. E desde então observo esse sentimento coletivo de anseio por um “messias”, por um salvador, que traga paz, leis mais justas, que acabe com a desigualdade social. Reconheço que esse anseio está no nosso DNA, que espera a chegada do verdadeiro Messias e aí, sim, teremos tudo isso e muito mais. E em cada eleição que presenciei o anseio por mudança, por esse salvador da Pátria, era nítido nas pessoas. E quando “eles” orquestraram o impeachment do Collor, esse anseio saiu pelos poros em forma de manifestações populares que entraram para a história do Brasil. E o povo que acreditava em Papai Noel ficou decepcionado, porque nada mudou como se esperava, e hoje está muito pior do que era. Essa carência de heróis e essa fé em uma única pessoa só pode ser a falta de um rei, porque para mim a monarquia é a forma de governo impressa no DNA humano, que é a forma de governo do verdadeiro Messias e do Reino do Eterno.

No meio da minha juventude, quando o Brasil já havia retomado o processo de eleições diretas, trabalhei como funcionária em uma instituição religiosa e ali pude ver muito de perto o reflexo da sociedade democrática brasileira e o que mais me chamava a atenção era como os adeptos da oposição e militantes partidários no processo eleitoral brasileiro levavam os mesmos “ideais” para o sistema religioso. E por muitas e muitas vezes vi a politicagem dos bastidores, vi a manipulação dos eleitores, e vi com muita tristeza a “oposição” deixar de apoiar uma ideia, não porque a ideia não era boa para o grupo, mas porque a ideia vencedora não havia sido a ideia do grupo de oposição, e eles, mimadinhos, ficavam emburradinhos e não ajudavam a colocar o projeto vencedor em prática, e pior, às vezes boicotavam, atrapalhavam, engessavam a engrenagem e atrasavam todo o processo. Entendi que aquele também era exatamente o modelo da oposição no Brasil, é como se pudesse ouvi-los dizer: “Se não é a minha ideia, sou contra, e pronto, não interessa se é para o bem do povo, se não sou eu que estou no poder, sou contra a tudo”. Desde então passei a ter horror a essa oposição, tanto no sistema eleitoral brasileiro, quanto no sistema religioso.

E dentro do sistema religioso acompanhei de perto e de longe alguns casos de impeachment (e sinto muita vergonha do meu passado). Quando o líder principal começava a desagradar aos "donos" da instituição, iniciava-se um motim que ia crescendo feito bola de neve e culminava com a expulsão do líder. E então começava o processo de escolha do novo líder, indicações, entrevistas, sabatinas, e enfim o novo líder era escolhido pela comunidade. No início só havia flores, mas depois do primeiro ano o motim começava de novo, às vezes terminava em um novo impeachment, às vezes a comunidade cansava e se resignava, apesar da insatisfação. Ou seja, era exatamente como na política, uma grande ilusão de que o líder vai salvar a Pátria e vai mudar o mundo, só que esse líder precisa agradar a gregos e troianos, e como isso nunca vai acontecer, continuam acreditando que o próximo vai ser melhor. E o pior é ouvir sempre a mesma coisa, tanto no sistema político quanto no sistema religioso: "Ah, no tempo de fulano era bem melhor".

Felizmente do sistema religioso eu me livrei, quando decidi seguir carreira solo na espiritualidade, ou melhor, carreira em duo, eu e meu marido, e abandonei o sistema e me libertei daquele ambiente doentio.